Os riscos no papel agora assemelhavam-se ao contorno de um dorso feminino.
O tempo havia parado desde que ali se acomodara, portando aquele papel e um lápis preto – daqueles cujo traço se assemelha a carvão. Resolvera hoje materializar o exercício que fazia todas as manhãs em que acordara em companhia de uma bela moça: sempre acordava primeiro, para saborear de um modo sinestésico as curvas que remoldara na noite anterior. As ondas dos lençóis, as almofadas jogadas, o corpo nu movimentando-se no ritmo da respiração suave – tudo no ambiente era redesenhado em sua memória, como se houvesse um resquício de prazer na atmosfera infiltrando-se em seu corpo através dos poros e narinas, imobilizando seus olhos de modo a emoldurar seu campo de visão.
Desde que acordara só havia bebido uma pequena xícara de café adormecido, pouco agradável ao paladar. Como estivesse muito confortável com a própria nudez, espreguiçou-se de frente à janela enquanto procurava com os olhos o maço de cigarros, habitualmente abandonado no parapeito, logo depois vitimando-o com sua falta de destreza matutina.
Ao abaixar-se para apanhar os cigarros deu de cara com a pasta de desenhos que caracterizava seu ofício. Esqueceu-se do vício enquanto uma idéia lhe brotava no íntimo e passou a esmiuçar com os olhos o pedaço de papel que de lá escapava: pelos traços, concluiu ser a planta de uma pequena casa. Volveu os olhos para a mulher adormecida; nem tudo era “projetável”.
Posicionou-se de frente para a cama, lápis e papel à mão. Não é possível arquitetar uma mulher – os cabelos escondiam-lhe a face, os cachos eram um prenúncio das ondas que compunham o corpo em repouso. O primeiro traço, o mais difícil: não sabia por onde começar, desconhecia os alicerces que constituíam a base daquela obra. Acostumara-se às retas, seu espírito deixara-se encaixotar pela exatidão dos quadrados e triângulos retângulos, embora na arte nunca tenha lhe agradado os Picassos.
Depois de alguns traços a idéia pareceu mais “possível”. “Quantas curvas, meu Deus...”. Pensou que retas eram coisas de homem; mulher é mesmo assim, sinuosa, não se conclui com uma explicação direta. São necessárias muitas explicações, muitos caminhos e muitas curvas.
Projeto finalizado, passou a desejar aquele desenho. O papel parecia-lhe um espelho – e poderia mesmo ser. Via ali a mulher que desejava, o corpo e a companhia que queria consigo e, quem sabe, para si. Via-se no corpo daquela mulher, o espírito excitado por uma invasão de sentidos e sentimentos. Dobrou o papel e cambaleou até a cama, deixando-se guiar pelo seu estado de embriaguês artístico-emocional.
“Mas o amor é mesmo assim, sinuoso... Precisa de muitas explicações, muitos caminhos e muitas curvas...” – Beijou os cabelos da moça, que remexeu, aconchegando-se. – “...E de uma mulher.”