quinta-feira, 28 de março de 2019

Alienação intelectualizada

Quando uma pessoa não é bem informada e consciente da sua situação e da situação da sociedade em que vive é logo rotulada de alienada. No entanto, vivemos em um mar de informações, muitas falsas, outras distorcidas, e mesmo as verdadeiras se repetem desnecessariamente numa quantidade absurda, e este mar de informação acaba nos afogando e nos alienando de alguma forma.
Durante o almoço, não sinto o gosto do que estou comendo porque estou olhando o celular. No percurso do ônibus, mal vejo o caminho por onde passo porque estou lendo algum artigo aleatório. Em qualquer minuto de espera - ou na realidade em qualquer segundo de espera - o gesto automático da maioria das pessoas ao meu redor é o de deslizar o dedo pela tela do celular, "alimentando-se" em algum dos feeds - seja do Facebook ou do Instagram, "comendo" a indignação ou a felicidade alheia, e indignando-se ou se alegrando (talvez invejando) com o que está na tela, mas ignorando a lua cheia no céu ou o mendigo deitado na calçada ao seu lado. Pego o celular: uma notificação. Dois minutos depois, pego o celular de novo: não há notificações. Quatro minutos depois: não há notificações. Cinco minutos depois: não há notificações, eu já deveria saber, mas insisto neste gesto automático de pegar o celular como se qualquer minuto de consciência do mundo real/presente fosse insuportável.
Mas não há apenas a alienação pela distração. Há também a alienação pela informação tida como útil: artigos de jornais, vídeos com análises políticas, discursos sobre o fim do mundo que nunca chega: a crise constante. O que é engraçado, porque "crise" deveria ser justamente um estado de exceção. A "alienação intelectualizada" é típica dos ambientes acadêmicos e, por conhecer melhor este meio específico, posso dizer que é muito presente nos círculos politicamente à esquerda. É possível que seja muito presente nos de direita também, mas a bolha social na qual eu vivo me impede de compreender realmente o que se passa nos meios diferentes do meu - na realidade, nenhuma das pessoas politizadas muito próximas a mim tem uma posição extremamente diferente dos outros (Ou talvez tenha, mas prefira se abster de comentários com medo de que qualquer opinião constrastante tenha que enfrentar acusações. Talvez até mesmo vindas de mim - não me excluo deste meio, estou contaminada com a falta de paciência para lidar com o "oposto"). Enfim, se você não está deprimido e desesperado com a situação do país, meu amigo, taí o diagnóstico: alienado.
Não quero dizer que ler um artigo do El País vá me deixar três dias de cama com febre intensa. Mas a obsessão pela política e pelas mazelas do mundo ultrapassa a informação e beira o masoquismo. É preciso estar ligado em cada gafe do presidente para fazer piadas sobre o assunto. É preciso compartilhar todos os memes que tenham a ver com sua posição política, mesmo que eles não informem nada para quem desconheça o assunto. É imprescindível compartilhar artigos de jornal, mesmo que só tenha lido o título, ainda mais se esse título for bastante alarmista. É preciso, acima de tudo, curtir e compartilhar qualquer textão que pareça minimamente expressar o meu ponto de vista, mesmo que eu não tenha tido tempo suficiente para refletir sobre o assunto. Não há tempo para refletir sobre nenhum assunto. Meme bom é meme quente, a piada do último minuto, o textão sobre o último massacre, a reação imeditada às informações que se sobrepõem. Não precisamos que a televisão faça terrorismo psicológico, nós mesmos nos encarregamos de entrar em pânico sozinhos. E, não bastando entrar em pânico, espalhamos o pânico porque não queremos que ninguém seja "alienado".
É preciso estar informado, é preciso estar consciente dos seus direitos e lutar por eles - não pretendo discordar disto. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso respirar. É preciso olhar em volta e enxergar o que há aqui e agora. É preciso começar fazendo pouco, no cotidiano, mudanças pequenas. É preciso exercitar a escuta e a paciência, e aceitar que nem sempre há um jeito de "ganhar" uma discussão. É preciso não comprar o discurso pronto - ou o meme pronto, o textão pronto, a "lacração" pronta. É preciso ter tempo pra pensar antes do like.