domingo, 16 de janeiro de 2022

Existe escolha no capitalismo?

Um assaltante te aborda na rua e pede que você entregue a bolsa com todos os seus pertences. Você, teoricamente, tem uma escolha: entregar a bolsa e perder tudo, ou não entregar e ser morto com um tiro na testa. O que você escolhe?

Assim como o discurso meritocrático, a ideia de que todos nós somos donos das nossas decisões ao longo da vida é falha dentro de uma sociedade desigual. Suponhamos que a venda de órgãos seja legalizada. Quem estaria mais "disposto" a arriscar a vida retirando partes do próprio corpo: uma pessoa que consegue comer bem, pagar todas as contas em dia e não precisa se preocupar com o desemprego, ou alguém na situação oposta, cheio de dívidas, com insegurança alimentar e precisando de dinheiro imediato? O mesmo poderia ser imaginado para os casos de prostituição e barriga de aluguel.

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Coisas que passam pela minha cabeça enquanto almoço.


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

15 de outubro, dia do professor.


É bastante difundido um conto do Zen Budismo no qual um professor universitário faz uma longa viagem para encontrar um mestre zen e, em vez de ouvir o mestre, tentava a todo momento expor o seu próprio conhecimento sobre o zen. Então, o mestre lhe oferece chá e não pára de servi-lo quando a xícara começa a transbordar. Quando o professor reclama, dizendo que sua xícara está cheia, o mestre explica que, se a xícara dele já estava cheia, não havia razões para que ele buscasse os ensinamentos do mestre. Ou seja, para aprender é preciso se despir das próprias certezas.

Para aprender é preciso ter a humildade de escutar. Mas nós, professores, também precisamos esvaziar nossas xícaras, especialmente em um tempo onde a autoridade de quem ensina é constantemente colocada à prova pelas informações buscadas pelos alunos na internet.

Eu, particularmente, já passei por momentos em que a vontade era dar a carteirada de "a professora sou eu" quando algum aluno vinha contar que fulano de tal na internet discordava de algo que eu estava tentando ensinar. Mas a verdade é que, cada vez mais, o nosso lugar está mais relacionado a uma curadoria de conteúdos do que aquele de "emanar saber".

No fim das contas, nós, professores, somos apenas pessoas que já estão estudando um determinado tema há mais tempo. Continuamos estudando até o fim da vida, e talvez se nossos alunos conseguirem nos ver desta forma, vão compreender que estamos aqui para tentar mostrar um caminho que já foi percorrido por nós, para que eles não precisem perder tempo e disposição tentando não se afogar na infinidade de conteúdos (bons ou maus) disponíveis online.


E fica aqui um auto-lembrete: o de respirar fundo e contar até dez cada vez que algum aluno tentar me empurrar a sua xícara cheia. Afinal, se a minha também estiver transbordando, no fim nós dois sairemos frustrados deste encontro, molhados pelos nossos próprios chás.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Violino


Na alma do meu violino
estão guardados os meus sentimentos
um coração de poeta
e alguns outros inventos.

Apoiadas em seu cavalete
as cordas são como telas
onde os dedos pintam cores
de melodias singelas.

Seu estandarte não porta bandeiras,
brasões, doutrina ou país;
a música não tem fronteiras,
a emoção é o seu verniz.

Na queixeira descanso o rosto
como quem deseja dormir;
as arcadas são movimentadas
pelo meu mais puro sentir.

Gentilmente torço as cravelhas,
afinando uma nova canção,
indo a todas as orelhas
que se abrem ao meu coração.

domingo, 28 de abril de 2019

Gente humilde

Outro dia estava conversando com um primo meu que está trabalhando em um emprego que eu considero muito estressante. Perguntei a ele se estava gostando do novo emprego e a resposta veio acompanhada de um suspiro e um sorriso desconcertado: "tenho que gostar, né".
Fiquei um pouco sem graça com a minha falta de sensibilidade e tentei remedar dizendo que o importante era ter o emprego, que gente chata tem em qualquer lugar e essas coisas. Depois que nos despedimos, pensei várias vezes nesse episódio e resolvi escrever um pouco das coisas que têm passado pela minha cabeça.
Eu sempre vi uma diferença entre a minha vida e a vida de muitos dos meus primos. Eu pude estudar em escola particular, emendei o ensino médio na faculdade, fiz intercâmbio e estou na pós-graduação. A necessidade de começar a ganhar algum dinheiro surgiu em mim durante a faculdade, não por uma demanda externa, mas porque eu queria não precisar pedir dinheiro aos meus pais cada vez que quisesse comprar um chiclete. Mais tarde eu vi esta situação se alterar um pouco, claro, mas mesmo me sentindo um pouco mais responsável pelos custos da minha casa e por ajudar meus pais, minha contribuição ainda não chega a ser algo imprescindível.
A maioria dos meus primos estudou em escola pública, formou no ensino médio (alguns nem formaram) e nem tentou entrar na universidade. Muitos dos meus primos começaram a trabalhar durante a adolescência, quando isso ainda nem passava pela minha cabeça. Vendendo picolé, trabalhando em lanchonetes, em casas de família - nenhum trabalho que fosse algo que eles realmente se sentissem empolgados fazendo. Mas isso não quer dizer, por outro lado, que eles tivessem algum problema com isso - é a lógica do "é importante ter um emprego, não importa se não é tão divertido". A maioria deles está casada e tem filhos, e o dinheiro que eles ganham não é importante apenas para eles, já que têm responsabilidade sobre uma casa e as pessoas que nela habitam.
Eu nunca gostei da associação que as pessoas fazem entre pouco dinheiro e humildade. Sempre achei que alguém pode ser rico e humilde ou pobre e arrogante. No entanto, percebo que em certos aspectos a falta de dinheiro exercita ao menos um tipo de humildade: saber que algo é necessário, que não depende só da minha vontade, uma certa resiliência. Eu me permito recusar trabalhos que eu não considero tão bem remunerados ou muito chatos. Um primo que tem três crianças em casa para alimentar não tem a mesma forma de pensamento que eu: em tempos de desemprego, qualquer oferta de trabalho é recebida com um sorriso.
Pensar sobre isso me fez sentir um pouquinho de vergonha sobre todas as vezes que eu reclamei por trabalhar e estudar ao mesmo tempo, ou por ter que fazer algo que eu não gostasse para ganhar dinheiro. Isso porque trabalhar nestas situações, para mim, estava relacionado a algum objetivo muito pessoal meu. No caso dos meus primos, trabalhar significa conseguir viver, se alimentar, comprar roupa pros filhos. O que nos move é bastante diferente. Pensando de uma forma cínica, poderíamos dizer que ambos os lados escolheram aceitar ou não os empregos, ou escolheram as razões pelas quais vale a pena trabalhar. Para mim, todavia, parece injusto comparar alguém que junta dinheiro para tirar a carteira de motorista com alguém que conta com o salário de todo mês para alimentar os filhos.
Eu não invejo a situação deste meu primo. Eu gostaria que ele pudesse encontrar um emprego bem melhor do que ele tem agora. A nossa conversa, porém, me fez desejar ter um pouco desta humildade de quem vê a vida de uma forma mais prática e imediata, sem se sentir um coitado por isso - e que fique claro aqui: eu acho sim que uma pessoa que trabalha pra conseguir um salário mínimo e tem que aceitar um trabalho super estressante é, sim, uma vítima de um sistema que, embora naturalizado pela nossa sociedade, é horrível e violento.  Ou seja, se ele se sentisse uma vítima, não acho que ele estaria errado, apenas estaria menos feliz. Porque, no fim das contas, este sentimento de injustiça por si só não o permitiria recusar o emprego, nem deixar de pagar as contas, e provavelmente ele só ficaria mais deprimido com toda a situação. É melhor que eu sinta esta indignação por ele, já que eu não tenho filhos pra criar nem estou, no momento, obrigada a trabalhar em algo que eu detesto.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Alienação intelectualizada

Quando uma pessoa não é bem informada e consciente da sua situação e da situação da sociedade em que vive é logo rotulada de alienada. No entanto, vivemos em um mar de informações, muitas falsas, outras distorcidas, e mesmo as verdadeiras se repetem desnecessariamente numa quantidade absurda, e este mar de informação acaba nos afogando e nos alienando de alguma forma.
Durante o almoço, não sinto o gosto do que estou comendo porque estou olhando o celular. No percurso do ônibus, mal vejo o caminho por onde passo porque estou lendo algum artigo aleatório. Em qualquer minuto de espera - ou na realidade em qualquer segundo de espera - o gesto automático da maioria das pessoas ao meu redor é o de deslizar o dedo pela tela do celular, "alimentando-se" em algum dos feeds - seja do Facebook ou do Instagram, "comendo" a indignação ou a felicidade alheia, e indignando-se ou se alegrando (talvez invejando) com o que está na tela, mas ignorando a lua cheia no céu ou o mendigo deitado na calçada ao seu lado. Pego o celular: uma notificação. Dois minutos depois, pego o celular de novo: não há notificações. Quatro minutos depois: não há notificações. Cinco minutos depois: não há notificações, eu já deveria saber, mas insisto neste gesto automático de pegar o celular como se qualquer minuto de consciência do mundo real/presente fosse insuportável.
Mas não há apenas a alienação pela distração. Há também a alienação pela informação tida como útil: artigos de jornais, vídeos com análises políticas, discursos sobre o fim do mundo que nunca chega: a crise constante. O que é engraçado, porque "crise" deveria ser justamente um estado de exceção. A "alienação intelectualizada" é típica dos ambientes acadêmicos e, por conhecer melhor este meio específico, posso dizer que é muito presente nos círculos politicamente à esquerda. É possível que seja muito presente nos de direita também, mas a bolha social na qual eu vivo me impede de compreender realmente o que se passa nos meios diferentes do meu - na realidade, nenhuma das pessoas politizadas muito próximas a mim tem uma posição extremamente diferente dos outros (Ou talvez tenha, mas prefira se abster de comentários com medo de que qualquer opinião constrastante tenha que enfrentar acusações. Talvez até mesmo vindas de mim - não me excluo deste meio, estou contaminada com a falta de paciência para lidar com o "oposto"). Enfim, se você não está deprimido e desesperado com a situação do país, meu amigo, taí o diagnóstico: alienado.
Não quero dizer que ler um artigo do El País vá me deixar três dias de cama com febre intensa. Mas a obsessão pela política e pelas mazelas do mundo ultrapassa a informação e beira o masoquismo. É preciso estar ligado em cada gafe do presidente para fazer piadas sobre o assunto. É preciso compartilhar todos os memes que tenham a ver com sua posição política, mesmo que eles não informem nada para quem desconheça o assunto. É imprescindível compartilhar artigos de jornal, mesmo que só tenha lido o título, ainda mais se esse título for bastante alarmista. É preciso, acima de tudo, curtir e compartilhar qualquer textão que pareça minimamente expressar o meu ponto de vista, mesmo que eu não tenha tido tempo suficiente para refletir sobre o assunto. Não há tempo para refletir sobre nenhum assunto. Meme bom é meme quente, a piada do último minuto, o textão sobre o último massacre, a reação imeditada às informações que se sobrepõem. Não precisamos que a televisão faça terrorismo psicológico, nós mesmos nos encarregamos de entrar em pânico sozinhos. E, não bastando entrar em pânico, espalhamos o pânico porque não queremos que ninguém seja "alienado".
É preciso estar informado, é preciso estar consciente dos seus direitos e lutar por eles - não pretendo discordar disto. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso respirar. É preciso olhar em volta e enxergar o que há aqui e agora. É preciso começar fazendo pouco, no cotidiano, mudanças pequenas. É preciso exercitar a escuta e a paciência, e aceitar que nem sempre há um jeito de "ganhar" uma discussão. É preciso não comprar o discurso pronto - ou o meme pronto, o textão pronto, a "lacração" pronta. É preciso ter tempo pra pensar antes do like.

Escola.

Escola é um lugar onde você muito provavelmente vai se sentir burro.

Se for aluno, em algum momento não vai entender alguma matéria, ou não vai ter muito estímulo pra aprender as coisas - afinal, você é obrigado a estar ali e o governo obriga o professor a te passar de ano. E, na real, boa parte da matéria aprendida será inutilizada assim que a fase de vestibulares passar.

Se for professor, você vai descobrir que falar várias línguas ou acumular títulos não te prepara pra sala de aula.
Não te prepara pra não se surpreender com o dilema de um aluno que está paralisado no meio do corredor porque a sola do tênis descolou e ele tem vergonha que os outros vejam, nem para fazer algo melhor do que uma gambiarra com cola quente pra colar a sola do sapato do aluno.
Não te prepara pra resistir à tentação de cair no determinismo de "fulano é bom, ciclano não presta". Ainda mais quando a própria escola acaba determinando que o fulano que não presta não deveria continuar estudando lá.
Não te prepara pra saber que o aluno que foi expulso tem um histórico de abuso, não sabe ler nem escrever aos 14 anos e começou a vender drogas - e mesmo assim alguns dos seus colegas se sentem felizes por não precisarem mais lidar com a sua desobediência.
Não te prepara pra descobrir que há alunos com necessidades especiais "incluídos" na sala, mas sem acompanhamento especializado, e que você tem que se virar porque é sua obrigação fazer o menino aprender alguma coisa.
Não te prepara para, mesmo passando todas as manhãs e todo o fim de semana ocupada com coisas da escola, ter que ouvir que terá que preencher suas horas vagas com atividades, incluindo aos sábados, porque essa é a sua obrigação e é pra isso que você tem "horas vagas".
Não te prepara para lidar com alunos que simplesmente não se importam com sua presença na sala, e falam tão alto que sua voz é incapaz de alcançar mesmo os alunos que se sentam na frente.
Não te prepara para lidar com os alunos que querem aprender, mas te culpam pela falta de disciplina na sala, e querem a todo momento chamar o pedagogo ou o diretor porque te acham incapaz de manter a turma quieta - o que não deixa de ser verdade.
Não te prepara para explicar a mesmíssima coisa trocentas vezes para um aluno, para ao final de 50 minutos ele não ter absorvido absolutamente nada das informações que você (acha que) passou.
Não te prepara para a sensação de que qualquer coisa que você tente fazer ou falar vai dar errado. Que suas falas sempre serão interpretadas como chatice ou estresse gratuito e que qualquer tentativa de inovação será vista com indiferença pelos alunos e com pena pelos colegas.
Não te prepara para o fato de que, mesmo que muitos alunos de estressem de uma forma inacreditável, você por alguma razão acaba se afeiçoando por muitos deles, e é difícil aceitar que não é culpa sua que eles não estejam aprendendo muita coisa.
Não te prepara para a profunda indecisão entre o ficar e o sair, o trabalhar bem e o "empurrar com a barriga", o assumir a culpa e o culpar a diretora, o governo, o "sistema".
Quando decide sair, o coração dói pelos alunos; quando decide ficar, a cabeça pesa com tanto trabalho (muitas vezes ineficaz).

Enfim, escola é um lugar onde você inevitavelmente vai se sentir burro.
E se sentindo burro, com o tempo, vai descobrindo que acabou aprendendo alguma coisa.